Pular para o conteúdo principal

Inverno sulino: dois lados da nesma geada

Inverno Sulino: Dois Lados da Mesma Geada

Entre o fascínio do turista e a luta diária de quem enfrenta o frio.



`Mão com luva laranja segura yrtos de geada em paisagem de inverno no Sul do Brasil.`
Cena gélida do inverno sulino, mão com luva sobre os galhos brancos de gelo.

Quando o termômetro ameaça tocar o zero, o Rio Grande do Sul se veste com seu manto mais denso de inverno. Nas cidades da Serra, o frio chega com ares de espetáculo — o estalar acolhedor das lareiras acesas, o fondue borbulhante e perfumado, turistas com rostos corados e sorridentes em busca da tal "neve brasileira". São esses que, com luvas coloridas, ousam tocar o galho coberto de gelo, encantados com a beleza que o termômetro abaixo de zero esculpe na paisagem. Mas há muito mais sob a camada prateada de geada que se forma nas madrugadas longas, mais do que os olhos turistas podem ver.

As casas gaúchas de tijolo nu ou madeira empenada parecem ter sido esquecidas pelos projetos de conforto térmico. Nem para o calor abrasador do verão, que faz o ar vibrar, nem para as chuvas torrenciais que arrastam invernos inteiros em cortinas cinzentas, tampouco para as manhãs em que o frio se insinua pelas frestas das portas como um invasor silencioso, roubando o pouco calor que resta. O vento, gélido e cortante, assobia pelos vãos, lembrando a cada minuto que não há trégua.

Enquanto os turistas celebram a cerração como poesia de inverno, com suas lentes embaçadas e respiração que vira fumaça, muitos dos que ali vivem apenas se apertam em cobertores finos e puídos, dividindo o pouco calor que emana dos próprios corpos e uma angústia silenciosa. Para a população mais pobre, o frio não tem charme; ele tem o peso da fome que dói ainda mais no estômago vazio, o chiado nos pulmões de crianças e idosos, a conta de luz impagável que chega para alimentar aquecedores improvisados e ineficazes. Ali, a beleza branca da geada se mistura ao cinza do desespero.

E é justamente nesse contraste gritante que o inverno gaúcho mostra sua face dupla: nas vinícolas charmosas da Serra, as reservas se esgotam com meses de antecedência, e o vinho tinto aquece gargantas satisfeitas; nos campos abertos, o gado encolhe sob a geada, seus mugidos roucos ecoam no ar gelado, e as lavouras veem o lucro de meses de trabalho congelar sob a indiferença do tempo. A economia se desdobra entre prejuízo e prosperidade — enquanto o campo contabiliza perdas amargas, o turismo esgota hotéis de luxo e impulsiona um comércio vibrante, aquecendo o caixa das lojas de malhas e chocolate.

O clímax dessa história se revela numa praça qualquer de Gramado: de um lado, uma família, com luvas coloridas e risadas cristalinas, molda pela primeira vez bonecos de neve, encantada como criança em parque de diversões. Seus olhos brilham com a descoberta da magia do inverno. Do outro, a poucos metros dali, uma senhora encurvada, enrolada em três casacos velhos e desbotados, com as mãos rugosas manchadas pelo carvão, vende castanhas assadas. O vapor que sai de seu pequeno carrinho é o único calor que a conforta, enquanto cada moeda é contada para tentar pagar o próximo botijão de gás, o pão do dia seguinte, o remédio para a tosse que não cede.

Entre o sofrimento mudo e o deslumbre ruidoso, o frio gaúcho se impõe com sua beleza cortante. Não é apenas uma estação que passa. É um espelho — que reflete as desigualdades profundas, escondidas sob o vapor quente do chocolate servido na xícara certa, longe dos olhos que só buscam o espetáculo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Pobre de Direita: Uma Definição Filosófica para Além do Senso Comum

Desvendando a Complexidade Filosófica do "Pobre de Direita" 1. Uma visão conceitual da Ideologia, Hegemonia Cultural e a Internalização de Narrativas Conservadoras sobre o Pobre de Direita A seta para a direita simboliza a trajetória de ideias simplistas que podem caracterizar o 'Pobre de Direita' . Desvendar a complexidade do fenômeno “Pobre de Direita” exige uma lente filosófica que transcenda as categorizações socioeconômicas. Configuramos aqui uma ideia potente, um constructo intelectual que permeia as estruturas do pensamento humano, influenciando a percepção da realidade política e social e, por conseguinte, as decisões coletivas. Essa ideia se manifesta na adesão a narrativas dogmáticas, na relutância ao exercício do pensamento crítico autônomo e na sustentação, muitas vezes paradoxal, de sistemas que perpetuam desigualdades estruturais. Embora sua conceituação inicial possa evocar categorias socia...

A FAFIMC-RS é a geradora de pensadores de filosofia.

FAFIMC-RS: Geradora de Pensadores O “campus” da FAFIMC era o espaço que abrigava pensadores da Filosofia. A foto mostra o antigo campus da FAFIMC. A FAFIMC foi um marco na história dos cursos de Filosofia no Estado do Rio Grande do Sul e no Brasil. A presente história começou com o Decreto n.o 47.534, de 29 de dezembro de 1959, que institui a FAFIMC. Em 16 de março de 1961, começou a formação de vários filósofos e pedagogos nesta instituição de grande prestígio nacional. Contudo, esta realidade foi finalizada através dos processos no MEC , os quais encerraram as atividades da FAFIMC e criaram a extensão do Campus da PUCRS em Viamão no seu módulo de (TI) o TECNOPUC RS. Contudo, nesta matéria, registrei algumas lembranças do ambiente acadêmico onde estudei por vários anos nessa conceituada instituição de ensino superior, a Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC). A ...

O sonho do hexa foi adiado com vexame e humilhação.

A emoção sufocou a razão e provocou a derrota da seleção brasileira. A seleção brasileira passa por maio humilhação da história diante da Alemanha. O sonho brasileiro de conquistar o hexacampeonato mundial se transformou em pesadelo. Mais uma vez foi adiado diante de um grande vexame, humilhação, fiasco, massacre, vergonha, que a seleção do Brasil sofreu naquela fatídica e inesquecível tarde de 08/07/2014, no estádio do Mineirão em Belo Horizonte. Quando o Brasil se curvou perante a Alemanha perdendo por 7 x 1.Os jogadores pareciam não estarem  em campo a Alemanha, passeou em todos os espaços  do  gramado da arena, brincou com categoria,  técnica, controle racional e  atenção  em jogar futebol com os pentas campeões atônitos, emocionais e chorões brasileiros. São coisas do futebol, mas esta derrota para a Alemanha deixará um legado de: medo descontrole vergonha e desilusão para um país penta campeã mundial que se ajusta numa batalha esportiva deci...