Entre o fascínio do turista e a luta diária de quem enfrenta o frio.
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Cena gélida do inverno sulino, mão com luva sobre os galhos brancos de gelo. |
As casas gaúchas de tijolo nu ou madeira empenada parecem ter sido esquecidas pelos projetos de conforto térmico. Nem para o calor abrasador do verão, que faz o ar vibrar, nem para as chuvas torrenciais que arrastam invernos inteiros em cortinas cinzentas, tampouco para as manhãs em que o frio se insinua pelas frestas das portas como um invasor silencioso, roubando o pouco calor que resta. O vento, gélido e cortante, assobia pelos vãos, lembrando a cada minuto que não há trégua.
Enquanto os turistas celebram a cerração como poesia de inverno, com suas lentes embaçadas e respiração que vira fumaça, muitos dos que ali vivem apenas se apertam em cobertores finos e puídos, dividindo o pouco calor que emana dos próprios corpos e uma angústia silenciosa. Para a população mais pobre, o frio não tem charme; ele tem o peso da fome que dói ainda mais no estômago vazio, o chiado nos pulmões de crianças e idosos, a conta de luz impagável que chega para alimentar aquecedores improvisados e ineficazes. Ali, a beleza branca da geada se mistura ao cinza do desespero.
E é justamente nesse contraste gritante que o inverno gaúcho mostra sua face dupla: nas vinícolas charmosas da Serra, as reservas se esgotam com meses de antecedência, e o vinho tinto aquece gargantas satisfeitas; nos campos abertos, o gado encolhe sob a geada, seus mugidos roucos ecoam no ar gelado, e as lavouras veem o lucro de meses de trabalho congelar sob a indiferença do tempo. A economia se desdobra entre prejuízo e prosperidade — enquanto o campo contabiliza perdas amargas, o turismo esgota hotéis de luxo e impulsiona um comércio vibrante, aquecendo o caixa das lojas de malhas e chocolate.
O clímax dessa história se revela numa praça qualquer de Gramado: de um lado, uma família, com luvas coloridas e risadas cristalinas, molda pela primeira vez bonecos de neve, encantada como criança em parque de diversões. Seus olhos brilham com a descoberta da magia do inverno. Do outro, a poucos metros dali, uma senhora encurvada, enrolada em três casacos velhos e desbotados, com as mãos rugosas manchadas pelo carvão, vende castanhas assadas. O vapor que sai de seu pequeno carrinho é o único calor que a conforta, enquanto cada moeda é contada para tentar pagar o próximo botijão de gás, o pão do dia seguinte, o remédio para a tosse que não cede.
Entre o sofrimento mudo e o deslumbre ruidoso, o frio gaúcho se impõe com sua beleza cortante. Não é apenas uma estação que passa. É um espelho — que reflete as desigualdades profundas, escondidas sob o vapor quente do chocolate servido na xícara certa, longe dos olhos que só buscam o espetáculo.
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