Como o culto bolsonarista criou uma base radical, manipulada e punida pela própria liderança.
Nos últimos anos, o Brasil testemunhou uma polarização política intensa, impulsionada por discursos populistas e pela desinformação disseminada nas redes sociais. Nesse cenário, emergiu a figura do patriotário: cidadão que, convencido de uma missão patriótica distorcida, abraçou narrativas falsas e ideias radicais em nome de um projeto autoritário. O termo "patriotário" nasce da junção de “pátrio”, que remete à pátria, com “otário”, que designa aquele que é facilmente enganado. A palavra, portanto, define um perfil específico de seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro: indivíduos que, tomados por um fervor irracional, abraçam narrativas sem fundamentação, agem movidos por desinformação e demonstram total submissão ao líder político, mesmo diante de evidências contrárias.
Mais do que um neologismo provocativo, o termo sintetiza um fenômeno político-social marcado por lealdade cega, intolerância e violência, culminando na instrumentalização do indivíduo contra as bases democráticas que ele deveria defender.
A Formação dos Patriotários: Engenharia da Submissão e Seus Canais de Desinformação
A construção dos patriotários foi uma engenharia estratégica que explorou vulnerabilidades sociais e psicológicas para criar uma base social multifacetada da extrema-direita no Brasil. Essa massa de manobra congrega indivíduos com diversos vieses: políticos, impulsionados por ideologias autoritárias; religiosos, que misturam fé e proselitismo político; e negacionistas, que rejeitam consensos científicos e fatos estabelecidos. A suscetibilidade desses indivíduos à manipulação reside, em parte, em contextos de crises econômicas e sociais, onde a busca por soluções simplistas e líderes carismáticos se intensifica. A desconfiança preexistente nas instituições e a busca por pertencimento e identidade em um grupo coeso também fornecem um terreno fértil para a adesão inquestionável. Além disso, a emergência de um analfabetismo digital e informacional generalizado dificulta a verificação de fatos, tornando-os presas fáceis para narrativas distorcidas.
Lideranças carismáticas, como Jair Bolsonaro, adotaram e refinaram técnicas clássicas de controle emocional e mobilização de massas. Isso incluiu a criação de inimigos comuns — como o Supremo Tribunal Federal (STF), a imprensa livre, as universidades e até mesmo adversários políticos genéricos, rotulados de "comunistas" —, que serviram para unificar o grupo por meio do ódio compartilhado. Paralelamente, difundia-se a promessa de uma "salvação nacional", um resgate moral e econômico que apenas o líder e seus seguidores poderiam alcançar, fomentando um sentimento de exclusividade e messianismo. Por fim, o culto à personalidade de Bolsonaro como modelo de autoridade inquestionável, acima das leis e das instituições, solidificou a lealdade incondicional.
Com o apoio irrestrito das redes sociais, essas mensagens foram amplificadas em câmaras de eco digitais, onde a desinformação e as teorias da conspiração floresceram sem contraponto. O mais cruel é que os próprios patriotários se tornaram canais de divulgação dessa desinformação, replicando conteúdos falsos e narrativas distorcidas, muitas vezes sem consciência da manipulação. Criou-se um ambiente de paranoia, ressentimento e uma completa negação da realidade, onde fatos eram substituídos por crenças e a crítica era vista como traição. Essa dinâmica resultou na polarização afetiva, onde as emoções superavam a razão, cimentando uma identidade de grupo baseada na oposição "nós contra eles". É crucial notar que a manutenção dessa base radicalizada muitas vezes dependeu de financiamento e apoio estratégico de setores da elite econômica e política, que se beneficiam da desestabilização e da polarização para atingir seus próprios objetivos.
O Ataque de 8 de Janeiro e o Abandono Político: O Colapso da Fantasia
O ponto culminante e mais dramático do patriotarismo foi o ataque às sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. Milhares de manifestantes, impulsionados pela crença de que estavam defendendo a pátria e agindo por um chamado superior, protagonizaram um atentado sem precedentes à democracia brasileira. Eles acreditavam em uma narrativa de fraude eleitoral e em uma intervenção salvacionista que nunca viria.
A ironia cruel desse episódio reside no abandono total dos envolvidos pelo próprio líder que os incitou. Após meses de discursos inflamados e questionamentos infundados sobre o sistema eleitoral, Jair Bolsonaro não ofereceu nenhum respaldo político ou jurídico aos seus seguidores no momento crucial. Sem qualquer apoio estrutural, esses indivíduos passaram a enfrentar, de forma solitária, as severas consequências judiciais. Os primeiros réus já foram condenados pelo Supremo Tribunal Federal a penas que chegam a 17 anos de prisão, além de multas vultosas, expondo a brutal realidade da instrumentalização: a fantasia heroica desmoronou, deixando apenas a responsabilidade individual (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2025).
O Legado: Cegueira Política, Derrota Institucional e o Imperativo da Consciência Cívica
Os eventos que levaram e culminaram no 8 de janeiro revelam lacunas profundas e preocupantes na sociedade brasileira. A falta de educação cívica robusta e a vulnerabilidade à manipulação emocional se tornaram evidentes, permitindo que cidadãos confundissem liberdade de expressão com impunidade e atitudes antidemocráticas com patriotismo. Esse episódio expôs a fragilidade de uma parcela da população diante de discursos autoritários e a dificuldade em discernir entre fatos e fabricações.
Os patriotários não representam apenas um grupo radical; eles são o reflexo de uma sociedade que precisa urgentemente investir em consciência crítica, em pluralidade democrática e em comunicação honesta. Para mitigar futuros riscos, é fundamental fortalecer a alfabetização midiática, capacitando os cidadãos a analisar criticamente as informações e identificar desinformação. Além disso, o fortalecimento da mídia independente e discussões sobre a responsabilidade das plataformas digitais na disseminação de conteúdo nocivo são cruciais para a saúde democrática.
Apesar da gravidade dos ataques, é vital reconhecer a resiliência das instituições democráticas brasileiras. O Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e o Ministério Público demonstraram capacidade de resposta e defesa da Constituição, resistindo aos ataques e responsabilizando os envolvidos, o que impediu uma "derrota institucional" completa. Paralelamente, o papel da sociedade civil organizada, da academia e de setores da imprensa livre foi fundamental na contenção desse fenômeno, atuando como vozes de razão e contraponto à desinformação, reforçando a capacidade de defesa da democracia brasileira, ainda que sob forte pressão.
A Ameaça Transnacional: Patriotários como Lastro Global do Extremismo
Além de suas consequências internas, o fenômeno dos patriotários representa uma base social fundamental para a manutenção e perpetuação da extrema-direita no Brasil. Esses indivíduos, radicalizados e mobilizados por vieses políticos, religiosos e negacionistas, formam um contingente fiel que pode ser reativado para novas investidas contra a ordem democrática, servindo como massa de manobra para agendas autoritárias e, crucialmente, como elos na disseminação de desinformação.
Mais preocupante ainda são os desdobramentos internacionais dessa dinâmica. A ascensão de movimentos de extrema-direita em diversas partes do mundo demonstra uma interconexão ideológica e estratégica, onde grupos da mesma estirpe dos patriotários brasileiros, embora com outras denominações, atuam de forma análoga. Eles também formam o lastro social para a manutenção de extremismos, utilizam a desinformação como ferramenta e operam em câmaras de eco digitais. Nesse cenário, o caso brasileiro se alinha a um padrão global de desestabilização democrática, onde a desinformação e a instrumentalização de bases sociais leais são táticas comuns. Um exemplo alarmante dessa interconexão e da potencial interferência externa foi a pressão exercida pelo governo Trump sobre o processo jurídico contra Jair Bolsonaro. Através de chantagens veladas de taxações e outras formas de coerção econômica, buscou-se influenciar decisões soberanas do Brasil, expondo a dimensão mais vil e perigosa dessa articulação internacional da extrema-direita. Isso evidencia como o extremismo, alimentado por bases como os patriotários, transcende fronteiras e busca minar a soberania e a estabilidade de nações, revelando uma ameaça muito maior do que meras disputas políticas domésticas.
Um Alerta Urgente para a Democracia e os Desafios Futuros
Portanto, o caso dos patriotários deixa uma lição dura e necessária: projetos de poder autoritários não protegem seus seguidores — eles apenas os usam como ferramentas. E quando a fantasia ideológica colapsa, resta ao indivíduo enfrentar sozinho as amargas consequências de atos que, em sua bolha de desinformação, acreditava heroicos.
A lição dos patriotários não se restringe, contudo, às fronteiras nacionais. Eles personificam a base social que a extrema-direita busca consolidar e ativar em escala global, representando um elo crucial na corrente de movimentos autoritários transnacionais. A capacidade de manipular e mobilizar cidadãos por meio da desinformação e do fervor irracional cria um terreno fértil para a corrosão democrática em diversos países. O caso brasileiro, nesse sentido, ecoa movimentos similares pelo mundo.
Com as eleições do próximo ano se aproximando, a preocupação com os desdobramentos futuros para a democracia brasileira se intensifica. Os patriotários não são simplesmente uma classe política de extrema-direita inócua; pelo contrário, eles poderão ter um papel fundamental e crucial no retrocesso político e democrático no Brasil. Sua existência como uma base radicalizada e mobilizável representa um risco latente, capaz de ser ativada para desestabilizar o processo eleitoral, propagar ainda mais desinformação e impulsionar candidaturas alinhadas a projetos autoritários. O que ocorre no Brasil reflete um padrão visto em muitos países, onde a extrema-direita assumiu o poder e as consequências para as nações foram diversas, mas invariavelmente perigosas para as liberdades civis e o funcionamento das instituições.
A democracia, portanto, não se defende apenas com leis internas; ela exige uma vigilância constante contra as articulações globais do extremismo, sustentando-se com educação de qualidade, participação cidadã consciente e respeito inegociável às diferenças. Que o episódio dos patriotários seja compreendido não apenas como um fenômeno local, mas como um alerta global sobre os perigos da idolatria política, da alienação cidadã e da teia transnacional de desinformação e coerção que ameaça as fundações democráticas em todo o mundo.
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Referências Bibliográficas
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LIMA, André. A lógica do extremismo político: teoria e prática na era digital. Brasília: Editora UnB, 2022.
MENDONÇA, Raquel. “Seguidores cegos e líderes carismáticos: a construção dos patriotários no Brasil.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 38, n. 113, p. 45–62, jan./mar. 2024.
SILVA, João Carlos. Bolsonarismo: ideologia, identidade e mobilização. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “Julgamento dos réus envolvidos no ataque às instituições em 8 de janeiro de 2023.” Portal do STF, [s.d.]. 30000 em: https://portal.stf.jus.br Acesso em: 12 jul. 2025.
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