Um Legado dePensamento e Resistência em Viamão
Mais do que um centro de ensino, a FAFIMC constituiu-se como um território filosófico, onde o pensar era vivido como ato ético, espiritual e político. Seus corredores, bibliotecas e campos esportivos não apenas abrigaram estudantes — foram cenários de travessias existenciais, de encontros com o saber e com o outro.
Este artigo propõe uma reflexão sobre a FAFIMC como projeto educativo e civilizatório, destacando sua contribuição à formação integral do ser humano e, sobretudo, o legado que permanece vivo na memória, na práxis e na produção intelectual de seus egressos.
- A Filosofia como Fundamento da Formação Integral
A FAFIMC foi concebida em consonância com os ideais personalistas e humanistas que marcaram a educação católica no pós-guerra. Inspirada na tradição escolástica e aberta ao pensamento moderno, a instituição assumia a filosofia como fundamento da formação integral, entendendo o ser humano como unidade de corpo, mente e espírito.
O currículo contemplava disciplinas como lógica, ética, metafísica, epistemologia, antropologia filosófica e pedagogia crítica, promovendo uma formação que transcendia o tecnicismo e valorizava a dimensão sapiencial do saber. A filosofia era vivida como vocação, como abertura ao mistério do ser e como compromisso com a justiça.
- Ambiência Educativa: Entre o Silêncio e o Movimento
A estrutura física da FAFIMC favorecia a experiência educativa como vivência simbólica. A biblioteca, cercada por jardins e marcada pelo silêncio contemplativo, funcionava como espaço de interioridade, onde o pensamento se desdobrava em escuta e escrita. Ali, o estudante não apenas lia — ele se deixava ler pelos textos, numa hermenêutica existencial.
Por outro lado, os espaços esportivos, como o campo de futebol e as quadras, representavam a corporeidade como dimensão educativa, em consonância com o ideal clássico de mens sana in corpore sano. A convivência, o jogo e o movimento eram compreendidos como expressões da filosofia em ato — uma pedagogia do corpo que complementava a pedagogia da mente.
- Legado Intelectual e Transformações Institucionais
Durante décadas, a FAFIMC formou pensadores, educadores, religiosos e líderes comunitários que atuaram em diversos campos do saber e da prática social. Seu legado ultrapassa os limites geográficos do Rio Grande do Sul, alcançando reconhecimento nacional pela qualidade de sua formação e pela densidade de sua produção intelectual.
Com as reformas educacionais e as exigências de reestruturação institucional, a FAFIMC encerrou suas atividades em Viamão, sendo incorporada ao campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em 2004. A antiga sede passou a abrigar o TECNOPUC-RS, voltado à inovação tecnológica e à inteligência artificial — uma transição que, embora necessária, marca o deslocamento simbólico da filosofia para os domínios da técnica. Este movimento reflete a própria mudança de paradigmas na educação superior contemporânea, que tem priorizado a formação técnica em detrimento da dimensão humanística.
- A FAFIMC na Ditadura: Resistência Silenciosa e Abrigo Filosófico
Segundo relatos orais de ex-professores e alunos, há indícios de que, durante o período da ditadura militar (1964–1985), a FAFIMC teria acolhido estudantes e docentes perseguidos politicamente. Há menções à prisão de alguns desses indivíduos, episódios que, contudo, não parecem ter sido registrados na grande imprensa da época. Uma busca em jornais de Porto Alegre do período não revelou notícias específicas sobre a prisão de membros da comunidade acadêmica da FAFIMC, o que é um indício do caráter discreto e silencioso da resistência na instituição.
Em tempos de censura e repressão, onde a grande imprensa era controlada e a vigilância era constante, a FAFIMC teria funcionado como um porto seguro para o pensamento crítico. A ausência de fontes escritas, nesse contexto, pode ser atribuída à autocensura, ao receio de perseguições e à própria natureza da resistência ali praticada. Mais do que atos públicos de confronto, a FAFIMC teria preservado espaços de escuta, reflexão e formação ética, se tornando um verdadeiro abrigo filosófico em meio ao regime autoritário.
Essa memória oral, que resiste ao apagamento histórico, torna-se um testemunho legítimo e necessário. Preservá-la é reconhecer que a filosofia, quando vivida como prática de liberdade, resiste mesmo no silêncio imposto pela repressão.
- O Legado da FAFIMC: Filosofia Encarnada na Memória e na Práxis
O encerramento das atividades da FAFIMC não significou o apagamento de sua influência. Ao contrário, a instituição permanece como legado vivo, propagado por meio das trajetórias de seus egressos, das ideias que germinaram em suas salas de aula e da ética que orientou sua prática pedagógica.
Esse legado manifesta-se em múltiplas dimensões, com destaque para a importância de seus espaços físicos na formação de sua comunidade:
- Na Biblioteca: O acervo da FAFIMC era um diferencial notável. Graças a convênios com instituições de países como Europa, a biblioteca contava com obras em seus idiomas originais, conferindo-lhe uma profundidade rara no Rio Grande do Sul e transformando-a em um epicentro de pesquisa e contato direto com o saber filosófico de sua fonte.
- No Teatro: O espaço do teatro era o coração pulsante da vida acadêmica. Além das formaturas, que celebravam o rito de passagem de cada turma, o local era palco de debates acalorados, semanas filosóficas com pensadores de todo o país e lançamentos de livros. Utilizado também por estudantes de Pedagogia e com poucas interrupções, o teatro era um ambiente de aprendizado contínuo e de intensa efervescência cultural.
- Na docência, por meio de professores que continuam a formar novas gerações com o mesmo rigor filosófico e compromisso humanista.
- Na pesquisa, através de trabalhos acadêmicos que resgatam e atualizam os debates iniciados na FAFIMC.
- Na atuação comunitária e pastoral, onde o pensamento crítico se converte em ação transformadora.
- Na memória afetiva, que resiste ao esquecimento e se transforma em narrativa, em testemunho, em inspiração.
A FAFIMC ensinou que a filosofia não é um saber abstrato, mas uma forma de estar no mundo. Seu legado é, portanto, encarnado — vive nos corpos que pensam, nas vozes que questionam, nas mãos que constroem. Preservar esse legado é um dever ético e histórico. É reconhecer que a educação, quando enraizada na escuta, na reflexão e na alteridade, transcende os limites da institucionalidade e torna-se força civilizatória.
Sendo assim, a FAFIMC não é apenas uma instituição extinta — é uma presença ontológica que continua a habitar o pensamento, a ética e a ação daqueles que por ela foram tocados. Seu legado não se limita a diplomas ou registros acadêmicos, mas se manifesta na forma como seus ex-alunos ensinam, escrevem, convivem e resistem.
Em tempos de crise epistêmica e banalização da formação, a FAFIMC nos lembra que educar é mais do que instruir — é cultivar humanidade. A filosofia ali ensinada não era apenas teoria, mas prática de vida, escuta profunda, abertura ao mistério.
Preservar sua memória é um gesto de justiça histórica e um compromisso com o futuro. Porque onde houver alguém disposto a pensar com profundidade e viver com integridade, ali estará a centelha da FAFIMC — viva, pulsante, transformadora.
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Referências:
- BRASIL. Decreto nº 47.534, de 29 de dezembro de 1959. Institui a Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Diário Oficial da União.
- BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
- PUCRS. Tecnopuc Viamão. Disponível em: https://www.pucrs.br/tecnopuc. Acesso em: 19 set. 2025.
- ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
- UNESP. Formação de Professores na Ditadura Militar (1964–1985). Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2015/jornadadonucleo/formacao-de-professores-na-ditadura-militar-1964--1985.pdf.
- Correio Braziliense. Professores contam o que viveram durante a ditadura militar na UnB. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br. Acesso em: 19 set. 2025.
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